Considerações sobre a família multiespécie
Segundo estimativas da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação, existem no Brasil aproximadamente 37,1 milhões de cães e 21,3 milhões de gatos. De acordo com esses dados, o Brasil é a 4ª maior nação do mundo em população de animais de estimação e a 2ª em cães e gatos. O conceito de família multiespécie, proposto por Faraco (2008), procura compreender a mudança de status desses animais em famílias que “reconhecem como seus membros os humanos e os animais de estimação em convivência respeitosa”. Entre os fatores que estimulam a mudança no status e no tipo de convivência com os animais de estimação, é válido citar a queda da taxa de fecundidade no Brasil, que passou de 6,16 filhos por mulher em 1940 para 1,89 filhos em 2008 (CANANI & FARACO, 2010). Para a geração, típica dos grandes centros urbanos, em que os filhos são evitados ou adiados, a função de companhia dos cães e gatos torna-se mais importante que as funções tradicionais - vigia e controle de pragas. Sendo a companhia sua função, esses animais são trazidos para dentro das casas, compartilhando os ambientes e a rotina diária. Essa tendência é fortalecida pela verticalização das cidades, pois a vida em apartamentos reduz a necessidade das funções supracitadas e impossibilita a criação de cães e gatos presos no quintal ou soltos na rua. Tal tendência não diz respeito aos tutores de cães e gatos de maneira geral, e sim a parcelas da classe média dos grandes centros urbanos, que reúnem as condições já mencionadas e inserem-se em redes nas quais é ativado o que chamo de discurso familista – presente tanto no “mundo da proteção”, quanto no “mundo pet”. O senso comum julga o discurso familista como tradução direta de mudanças significativas nas práticas sociais dos tutores de animais e pinta-lhe com cores exageradamente positivas ou negativas. Uma análise mais atenta, entretanto, permite compreender que: 1- o uso desse discurso não é necessariamente acompanhado de mudança de status moral dos animais; 2- a entrada dos animais de estimação nas famílias está permeada de ambiguidades; 3- o discurso familista com frequência apresenta-se estrategicamente como forma de justificar as relações travadas com os animais diante de questionamentos baseados nos valores tradicionais de exclusão dos cães e gatos da comunidade moral. O discurso familista marca uma tentativa de reduzir a disparidade de consideração moral em relação aos animais não humanos, mas, uma vez estabelecido, também pode mascarar as disparidades renitentes nesse novo tipo de família denominado multiespécie. Diante dessa nova configuração social, multiplicam-se as formas possíveis de tutoria e os julgamentos mútuos sobre a forma como as pessoas lidam com cães e gatos (LEWGOY, 2014; SARANDY, 2012). Choques de sensibilidade surgem, então, como resultado do aumento do controle sobre as relações de tutoria e do descompasso entre os valores estabelecidos e as experiências recentes de convívio íntimo.
Expositores: Maria Helena Costa Carvalho de Araújo Lima (UFPE) |